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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

O Autor, ainda

Respondendo ao texto de Dudley Andrew, Teixeira Coelho revisita a tese de Foucault sobre o fim do autor

É no mínimo curioso que ainda se discuta,hoje, se é possível ou não voltar a falar em autoria, se o autor existe ou não, se o autor — depois de um período de ostracismo — voltou à cena em carne e osso ou sob o disfarce de um conceito meio vazio, meio forçado, meio envergonhado. Em todo caso, antes de discutir se o autor de fato voltou e como voltou, talvez fosse interessante indagar por que, afinal,a tese do fim do autor pôde ser formulada num determinado momento,reexaminar as condições em que foi gerada a tese de Foucault — uma vez que é ele quem se cita como o autor do fim da ideia do autor, embora outros tenham na mesma época sustentado a hipótese do fim do sujeito em geral, situando-a numa perspectiva histórica e determinando o lugar que ela ainda pode ocupar na reflexão contemporânea. Esta providência torna-se mais oportuna pelo fato de que acaba de aparecer, na França,o primeiro volume de uma ampla coletânea de textos de Foucault que permaneceram inéditos ou tiveram no passado uma publicação um tanto marginal. É providência duplamente oportuna porque esse primeiro volume de Dits et écrits “Qu'est-ce qu'un auteur?”, a conferência pronunciada por Foucault em 1959, há 35 anos portanto, durante muito tempo acessível apenas através de periódicos de pequena circulação e que contém a tese do fim do autor — republicação esta que pode fazer crescer o risco de ver ressuscitada, na qualidade de produto fresco, a ideia do fim da autoria. Esse é um dos efeitos perversos da palavra impressa: ela nunca envelhece, ou envelhece bem menos do que a imagem no cinema, e apesar de sua perenidade forçada constituir-se às vezes em causa de vergonha ou incômodo para seu autor, seu frescor imaginado está sempre pronto a acionar, em leitores que tomam o presente como o único extrato da duração, esquemas conceituais, históricos e existenciais completamente datados ou deslocados. 

Naquela conferência, Foucault discutia os fatores históricos que fizeram emergir o nome próprio como categoria de atribuição da responsabilidade por um texto (ou autoria, por ele chamada de "função—autor"). Foucault recusava noções clássicas utilizadas pela história das ideias que assumiam a tese da autoria e que incluíam entre outras, o postulado da unidade da obra e da originalidade criadora. A procura da unidade de uma obra, de sua coerência interna, seria uma violência imposta do exterior ao texto (literário, cinematográfico etc.) — em outras palavras, uma camisa de força vestida sobre um texto, e sobre quem o gerou, com um intuito redutor e manipulador, ou magnificente e prestidigitador. São conhecidas as recusas dos autores às tentativas de classificação de suas obras neste ou naquele movimento, tanto quanto a fragilidade de certas categorizações e o uso que delas se faz como uma muleta na ausência de uma hermenêutica verdadeiramente seminal. Foucault retomou essa queixa dos criadores e dela fez, com razão em mais de um sentido, uma arma de sua guerrilha contra o que considerava o establishment cultural. Reivindicando a liberdade de mudar de voz quando bem entendesse, não permitindo que lhe fosse cobrada qualquer coerência interna necessária à caracterização de um autor (“Preciso destacar que não endosso sem restrições o que disse em meus livros", repetiria Foucault mais de uma vez, criando uma frase que seria tomada, talvez não ingenuamente,como um escândalo intelectual no Brasil de 1994 ao aparecer sob forma análoga na boca de um candidato às recentes eleições), Foucault afirmava: 1) que um autor não era igual a si mesmo; 2) que na verdade não existia um autor mas apenas uma “função—autor" que, para efeitos localizados,se responsabilizava pela geração de um texto; 3) e que nem mesmo essa função—autor seria indispensável ou, em todo caso, que não seria indispensável que essa função permanecesse constante em sua forma; seria possível imaginar, escreveu, culturas em que os discursos circulariam sem que a função—autor se cristalizasse, isto é, culturas em que os discursos circulariam no "anonimato do murmúrio" — talvez o mesmo murmúrio apontado por Dudley Andrew no início de seu artigo. 

Esta tese de Foucault não veio do nada, abruptamente. A semelhança que ostenta com as proposições estruturalistas em vigor no momento são fortes demais para serem descartadas rapidamente, apesar da negação oposta por Foucault, mais de uma vez, à tese de que teria dívidas junto ao estruturalismo. No entanto, essa vinculação é tudo menos invisível. Também o estruturalismo afastou o homem do palco, substituindo-o por mecanismos impessoais com atuação independente da ação e dos desejos do sujeito e que tomaram o nome, neste corpo conceitual, não de "funções”, como preferiu Foucault, mas de "estruturas" (embora Roman Jakobson tenha desde logo falado da função poética de um texto ou de sua função fática etc...). O indício mais evidente dessa tendência está na famosa Leçon de Roland Barthes,que marcou seu ingresso no Collège de France e na qual consta a famosa observação a respeito do homem que não fala a língua mas é por ela falado. Essa era, em resumo, a tese do estruturalismo: não há mais um sujeito, porém apenas uma estrutura que se recria independentemente do sujeito individual e que dele se serve, seja qual for, para validar-se e ao sistema a que pertence. Nunca será demais lembrar que o estruturalismo tomou como objeto privilegiado de estudo e como plataforma de lançamento de seus foguetes teóricos as chamadas "sociedades sem história", as comunidades primitivas ou indígenas. Não faltaram descobertas que carregavam água para o moinho de Foucault ao afirmarem, por exemplo, a inexistência nessas comunidades da figura do artista, se entendido à maneira ocidental (isto é,europeia) como um indivíduo destacado dos demais por seus méritos singulares e sua marca específica. Não haveria autores nessas sociedades, propunham muitas formulações estruturalistas, porque a arte (que nessas sociedades não seria vista como arte) não estava baseada na ideia da originalidade criadora e na diferença. Eram conclusões consideravelmente apressadas ou enviesadas, necessárias à manutenção do sistema teórico estruturalista mas que não se sustentavam quando encaradas a partir do solo real que diziam estudar. É sabido que, por mais invisíveis que pareçam aos olhos do europeu esses traços de distinção, os membros de uma comunidade dita primitiva ou sem história sabem não apenas reconhecer o autor notável de um pote ou de uma cesta trançada e pintada como dão especial valor a obras que de algum modo se diferenciam das demais. Certos casos são ilustrações gritantes desse fenômeno. Os membros de algumas tribos pintam o corpo ou parte dele (body art, sem dúvida) com desenhos feitos pelo próprio indivíduo e que se distinguem bastante uns dos outros, ancorados que estão na ideia da diferença e da criatividade. A declaração da inexistência do autor nas sociedades ditas sem história, genericamente consideradas, foi, não raro, fruto da observação perfunctória de determinados jogos sociais nelas presentes ou da dificuldade em lidar com situações aparentemente paradoxais. Paradoxais porque, por exemplo, em algumas sociedades sem história, assim como na cultura chinesa arcaica e na cultura europeia renascentista de Michelangelo, alguém se tornava um autor quando era capaz de pintar ou desenhar ou gravar ou esculpir exatamente como um dos mestres consagrados. Apenas quando sua obra se tornava indistinguível da obra de um autor reconhecido é que o novo autor podia enfim assiná-la com seu nome. Até então, o aspirante a autor não passava de um murmúrio artístico ou artesanal. Apenas quando se tornava igual aos outros — pelo menos àqueles que formavam o panteão — o pretendente conquistava sua identidade específica. Apenas nesse instante sua autoria era reconhecida. No entanto, se o novo autor quisesse continuar a ser um autor a ponto de transformar-se em modelo a ser imitado por novos pretendentes, a partir daquele mesmo instante deveria ser capaz de fazer algo que os outros não fizeram, algo que o diferenciasse de seus iguais... Provavelmente era esse contexto cultural que Jorge Luis Borges tinha em mente quando respondeu a uma pergunta sobre as influências sofridas por sua obra e os problemas subjetivos que isso eventualmente lhe acarretava. Sua resposta, soberba, é das que encerram a discussão: o problema não está em imitar ou não imitar alguém, disse Borges, a questão é ser inimitável...

Retornando ao ponto de partida, Foucault nadava, sim, nas águas do estruturalismo que privilegiava a estrutura em detrimento do sujeito. E não apenas a estrutura mas a estrutura vazia. A estrutura ausente, na fórmula de Umberto Eco. Para usar uma outra metáfora, Foucault seguia, sim, a corrente que partiu em busca de máquinas Kafka a respeito de uma máquina que, com agulhas e jatos de água, inscrevia na carne dos condenados a sentença proferida. A máquina é, neste caso, exemplo acabado de uma estrutura que opera por si mesma, eliminando a ação direta do homem e apresentando-se, na linguagem de Foucault, como autêntica função—carrasco (o que não é muito citado quando, eventualmente, se recorda essa máquina é que o oficial justiciador, que não mais crê em sua missão, liberta um condenado e suicida-se, deitando-se na máquina que,“enlouquecida”ou"paranoica”, se destrói na execução final). Outra máquina solteira igualmente famosa foi o quebra-cabeça conceitual proposto por Duchamp com seu Le Grand Verre-La mariée mise à nu par ses célibataires, même (O Grande Vidro — A noiva despida por seus celibatários, mesmo), imponente lâmina de vidro de 2,75 m de altura por 1,75m de largura, que se encontra hoje fincada no centro de uma sala do Museu de Arte da Filadélfia. O que se vê, pintadas na superfície transparente e não de todo ocupada pelas imagens, são formas ambíguas de aparência mecânica e de funcionamento incompreensível, desvinculada de qualquer racionalidade ou finalidade evidente, ou mesmo de impossível funcionamento: um hieróglifo, como já foi chamado, de alguma cena (supostamente) capital e incompreensível.Uma máquina sem autor que apenas exerceria uma função—arte, para insistir na linguagem de Foucault-Duchamp. Marcel Duchamp ,por falar nisso, é o grande antecessor de Foucault na tese da desnecessidade de um sujeito criador por trás de uma obra: seus ready-made são a materialização avant la lettre da função—autor e da função—arte. O indivíduo por trás de um ready-made nada mais faz do que coletar do mundo alguma coisa produzida por conjuntos que eventualmente englobem uma série de ready-mades não apresentam qualquer coerência ou unidade. Mais: toda e qualquer criação que haja nesse processo, que se realize antes da presença do indivíduo que o recolhe, se desenrola no "anonimato do murmúrio".

Propondo em 1969 a morte do autor, ou sua substituição pela função—autor, Foucault está assim banhado num certo espírito do tempo que se alimenta do estruturalismo dos anos 50 e 60, que remonta a Duchamp (O Grande Vidro é de 1915—1923) e que tem uma dívida ainda mais antiga (e mais ampla) com o marxismo e sua visão de uma história tocada não por personalidades individuais mas por grupos, classes ou massas que são autênticas funções—autor. Quando Foucault, em um movimento coerente com a conferência de 1969 sobre o autor, escreve dois anos depois um texto sobre Nietzsche (“Nietzsche, la genéalogie, l'histoire") para recusar a noção de origem — uma vez que essa noção ocultaria a descontinuidade radical dos eventos e acontecimentos e faria a História enredar-se nas quimeras de uma continuidade ininterrupta de causalidades —, as provocações de Duchamp no mesmo sentido já são antigas de seis décadas (o primeiro ready-made de Duchamp, o Porta-garrafas ,foi inicialmente exibido em público no ano de 1914). Não há portanto originalidade na proposta de Foucault — aspecto de que ele se orgulharia, considerando-se sua tese — mas há, sim, filiações e conexões com outras áreas e outros movimentos que propõem ou traduzem uma determinada sensibilidade histórica. Em outras palavras, mesmo que essa não fosse uma tese datada, há datas por trás dessa tese sobre o autor e essas datas exigem ser apreciadas em uma perspectiva histórica. Isto equivale a dizer que, se algo fez com que essa tese se justificasse num determinado momento, nada existe a priori que valide o prolongamento dessa sensibilidade e, menos ainda, a ressurreição extemporânea dela feita no último quarto de século. Para não ir muito longe, basta lembrar que o momento histórico de aparecimento dessa sensibilidade da redução da arte e, mesmo, da negação da arte e da auto-negação do artista, foi exatamente o momento marcado por duas guerras mundiais, cada uma delas consideradas, em suas épocas e com justa razão, apocalípticas. 

As conexões entre a tese de Foucault e o pensamento sistêmico do estruturalismo (para não mencionar as dívidas com o pensamento anárquico de Duchamp e com a ideologia finalista do marxismo) são demasiado fortes para que se dê muito peso às alegações em contrário de Foucault. Suas negativas, neste aspecto, surpreendem pela preocupação implícita de afirmar uma certa originalidade exatamente por parte de quem não apenas se diz desinteressado pela originalidade como convicto de que essa é uma questão irrelevante e, mesmo, inexistente. O fato, porém, é que, de modo análogo ao empreendimento de Duchamp propondo a possibilidade da existência de obras de arte feitas (quase) à margem do sujeito, e num procedimento similar ao do estruturalismo que via a trama cultural como algo independente da ação individual, também Foucault tratou de identificar os modos exteriores de constituição do sujeito. A interioridade do sujeito, para o Foucault que recusa as proposições da psicanálise (e isto é algo pelo que não se poderá censurá-lo), seria função da exterioridade das coisas. Para Foucault, como para Duchamp e para o estruturalismo, uma obra (um texto: tanto um filme quanto uma revolução) constitui-se ao largo de uma vontade e de uma ação individual — e se algum indivíduo conta para algo, não é senão como catalisador, conforme aparece no texto de Wollen citado por Dudley Andrew. O catalisador não é assim tão neutro como Wolle pretende. Mas o que importa de imediato, para que se possa determinar a viabilidade de sua sobrevivência, hoje, é saber o que, de ainda mais particular e imediato, levou Foucault a optar, naquele momento, pela tese do fim da autoria. Não parece possível compreender o cenário cultural em que surgem as ideias de “Qu'est-ce qu'un auteur?”sem recorrer à imagem da cultura francesa do momento como sendo uma cultura essencialmente narcisista. Não é novidade que a cultura europeia tem sido, de longa data, uma cultura narcisista, e menos novidade ainda que a cultura francesa tem se mostrado, na esfera da cultura europeia, particularmente narcisista. Para comprová-lo, basta ler, passagens de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss. E nos anos 60 (como também nos 70) uma série de fatos como a revolta dos estudantes em maio de 68 em Paris, o aparecimento da escola althusseriana do neo-marxismo ou do pós-marxismo, a proposição da linguagem como atriz principal no espetáculo feérico do lacanismo — fatos mais conjunturais ou descontínuos (isto é, não amarrados por uma cadeia ininterrupta de causalidades, novamente para alegria de Foucault) que sistêmicos — fez com que esse narcisismo encontrasse ressonância nas caixas acústicas de quase  todas as academias* (sobretudo nas americanas e, claro, brasileiras), e se acentuasse. Isto é sabido. O que talvez não seja muito, pacífico é o entendimento da natureza desse narcisismo e suas consequências.

Para compreendê-lo será preciso fazer como Foucault que, apesar de recusar a psicanálise, com ela firmava ocasionais pactos táticos que permitiam alcançar determinado ponto a partir do qual era possível continuar viagem em melhor companhia. Estabelecida essa aliança instrumental, será possível ver a cultura narcisista não como uma cultura da autoafirmação, conforme o entendimento comum do narcisismo, mas como uma cultura da perda da individualidade, da vitimização e da paranoia. Como se depreende dos estudos de Christopher Lasch, o imaginário da marginalização, da expulsão, do movimento forçado do interior para o exterior, a impressão de que se está sendo manipulado e ocupado por forças estranhas é próprio da cultura narcisista. Muito mais e muito antes que uma cultura de afirmação da identidade, o que está em curso nesse momento é uma cultura do que, mais tarde, Michel Maffesoli iria chamar de "cultura da identificação", uma cultura que nega a uniformidade de um indivíduo ou processo ao longo de todas suas fases e circunstâncias (em inteira concordância com a tese de Foucault, tal como ele a vindicou na já citada passagem sobre seu não comprometimento com as próprias ideias) e que navega nas águas de um eu fluido, multiforme e problemático, definido pelos papéis sociais e pelos desempenhos individuais (neste caso cabe outra vez a figura do catalisador, de Wollen). Esta cultura do fluxo elimina a associação entre identidade e continuidade da personalidade (o que é um alívio, do ponto de vista de Foucault assim como exclui a possibilidade de que essa identidade seja definida a partir do interior da pessoa. Essa cultura terá seus traços, digamos, positivos e poderá ser vivida: "condições sadias", e terá seus traços negativos, pode ser vivida patologicamente. O lado patológico dessa estrutura do fluxo é seu aspecto paranoico: a perda da individualidade (por exemplo, a perda da autoria) é sentida como resultante de um processo do indivíduo, da vontade do indivíduo, mas como efeito de um jogo de forças muito superior ao indivíduo, e a ele exterior, contra o qual nada pode. Será essa a razão pela qual a esquerda criticará Foucault acerbamente. Sartre entende que há em Foucault o desejo de construir uma última barragem contra o marxismo e Simone de Beauvoir escreve que as ideias de Foucault são o instrumento mais útil e contemporâneo que a burguesia tecnocrática poderia desejar.

A essa cultura geral do narcisismo, a que Foucault escapou, muito pelo contrário, seria necessária, que para maior irritação do autor de História da loucura acrescentar traços biográficos do autor capazes de  uma compreensão, ou quase—compreensão, da natureza: catalisador — Foucault, da função — Foucault. Já se falou em niilismo perceptível nas página: Foucault, bem como no seu dandi ético. Talvez não se tenha destacado suficientemente outros de seus trabalhos como sua incapacidade confessada de
experimentar o prazer, sua “incapacidade profunda de sentir prazer" como ele dizia, e as relações em que traços poderiam ter com a gênese uma tese como a do fim da autoria. E ainda, sua manifesta soberba, como anota outro de seus comentado Pierre Lepape, para quem a ideia de pensamento anônimo, do saber do sujeito, da obra sem autor configuram nada mais, nada menos que os tradicionais atributos de Deus (como, aliás, aparecem ao final do artigo de Dudley Andrew). Não há autores existem, diz Foucault, "instauradores de discursos", “fundadores de discursividade", como ele mesmo portanto se via, que não apenas escrevem seus próprios textos como inscrevem e definem a possibilidade e os limites de Instituição de outros (talvez de todos) textos futuros... já são uma função—autor, isto é, uma estrutura—autor, uma quina solteira. Todos estes são traços passíveis de explicações sob mais de um aspecto, o recurso à teoria do apagamento do sujeito e, em particular, da negação do autor. Uma negação relativa, bem relativa, como se vê, uma vez que, para Foucault, ser autor é pouco: mais que autor, ele preparou ser uma função—paradigmática, atuando em uma espécie de moto-perpétuo teórico, algo como um deus contratual. Sob mais de um aspecto a obra de Foucault — há portanto uma obra e um autor, Foucault — é instigante e produto de concepções renovadoras. Depois dele (como também depois de Duchamp etc.), por exemplo, nenhum autor se sentiu preso a um mesmo estilo, a um mesmo modelo, a uma mesma voz. Depois dele (e de Duchamp etc.) foi possível com nitidez a "quimera da origem"e,  portanto, entender que cada momento histórico não é uma totalidade homogênea com significado único (o que o distingue de fato, que Foucault queria, dos estruturalistas) e que a História como um todo não é uma continuidade ideal e necessária feita de uma cadeia de causalidades (o que o divorcia do marxismo). Mas, o que em Foucault ainda é atual? Quase certamente, a dimensão ética de sua obra e de sua vida, lida como associada à "revolução dos costumes" (outra expressão forte demais) em geral e à causa homossexual em particular. O que seguramente não é atual fica por conta de sua tese da negação do autor. A moeda da função—autor não teve na década de 60, como não tem agora, curso planetário. Outras culturas não foram e não são narcisistas ou tão narcisistas como a cultura francesa dos anos 60 e 70. A brasileira certamente poderia ser acusada de outros desvios, mas fora do mundo acadêmico, não desse. Idem em relação à inglesa e à italiano. Talvez a cultura americana, entre to-as, tenha sido a que "estruturalmente" mais se aproximou e aproxima-se da francesa. 

A fascinação americana por Foucault, Barthes, Derrida, Lyotard, Baudrillard, Lacan etc. se explicará não apenas por uma subserviência acadêmica a modelos interpretativos desligados de uma realidade nacional, como acontece no Brasil, mas (pelo menos também) pela presença visível na cultura americana de traços fortes da cultura do narcisismo, ainda que esse narcisismo tenha, nos EUA, uma outra constituição (o que não o impede de desembocar na mesma cultura da perda da individualidade e da paranoia). Será preciso ainda, para explicar o poder inseminador das teses de Foucault sobre a reflexão americana, lembrar a tradição dos EUA de contraposição da personalidade individual e dos direitos individuais ao sujeito social e aos direitos públicos (para favorecer estes contra aqueles) que, de um lado, gerou há pouco os excessos do “politicamente correto”e que, de outro, fez a mente americana mais permeável à ideia foucaultiana da constituição do sujeito e das coisas (portanto, do texto, portanto do autor) a partir do exterior e não do interior. De todo modo, não só as culturas não são todas narcisistas, como tampouco estes são os anos 60 e 70. Para críticos como George Steiner e Harold Bloom, como para um número considerável de críticos brasileiros, as ideias do autor e da autoria nunca saíram de cena. Harold Bloom, por exemplo, recusando a opção tomada por Wollen na reedição de seu livro, como citado por Dudley Andrew, acaba de publicar seu panteão autoral que constitui o cânone ou os cânones da literatura ocidental. Sem o recurso à ideia da autoria será possível enfrentar a Bíblia e a Odisséia mas não Proust, Joyce, Peter Greenaway, Fellini, Guimarães Rosa, Machado de Assis. A ideia contemporânea (para não dizer pós-moderna) a respeito de autoria não será mais ,sem dúvida, a do século XIX ou XVI. Será uma ideia da autoria que não mais elimina de uma obra aquilo que contraria sua linha central,será uma idéia da autoria que não se preocupa mais com traçar o retrato de uma suposta unidade da obra. Será, mesmo assim,uma idéia a respeito de autoria. 

O que importa destacar é que a tese do fim do autor como exposta por ou derivada de Foucault não assinala, contrariamente ao que se pensou e ainda se pensa, um ponto de partida teórico, mas um ponto de chegada, um fim de linha teórico, uma estação terminal de um moderno trem teórico que partiu do centro intelectual da Europa em meados do século XIX para encerrar sua viagem com o apito da pós modernidade. Não uma linha de partida mas o dead end, o impasse de um percurso com várias estações intermediárias (Duchamp, o estruturalismo, o marxismo), todas mais ou menos desativadas hoje, ou servindo apenas, modestamente, como pontos de baldeação para destinações obscuras. A viagem desse trem não foi inútil. Não apenas outros aspectos da autoria foram abordados no caminho — talvez nem todos ainda suficientemente percorridos (como o que coloca a écriture cinematográfica, para usar um termo caro a Dudley Andrew, especificamente na montagem e em nenhum outro aspecto envolvendo a produção de um filme) — como se despertou a atenção para outros componentes do fenômeno textual, por exemplo o espectador (e não tanto o público, figura em que ainda insiste o artigo de Andrew), também ainda não suficientemente esgotado.

É um tanto surpreendente que a discussão sobre a não-autoria tenha se mantido tanto tempo, ou que esta seja ainda uma questão a se discutir. De certa forma, não há como não vê-la agora, se não como um modismo, em todo caso como um modo dos estudos culturais. Um modo como outros e entre outros (como, por exemplo, o atual modo de entendimento do filme a partir da pintura), com seu valor localizado mas que não é certamente o modo definitivo. Esse modo foi claramente um modo—ramal. O retorno à linha principal não se fará nas mesmas condições em que se iniciou a viagem, nem com o mesmo estado de espírito. A viagem seguirá agora, também isto é certo, mais livre dos pesadelos com a unidade e coerência da obra e do autor; e sobre todo o cenário poderá voltar-se um olhar mais abrangente e vagabundo, mais divertido. Mas de um modo ou de outro, com a visão de linhas paralelas ou não, a viagem continuará a ser feita no trilho da autoria.

Teixeira Coelho é professor da ECA-USP e autor de Dicionáriobrasileiro de bolso e Niemeyer-um romance.

Fonte: Texto original sem referências de identificação da publicação (p.96 a p.73)



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